Dizer que o tempo está passando rápido, que tudo está ‘tão corrido’, já virou chavão. Mas quem parou para pensar nas consequências da correria? A principal delas é que todos estão sofrendo de amnésia. Ninguém se lembra de nada: qual história ouviu aonde, qual caso contou a quem, se já contou ou não. Nossa memória está toda picotada, feito um quebra cabeça antes de montar.
Assustei-me outro dia ao me dar conta de que não me lembrava do que havia feito na segunda-feira. Era sexta. Tentei, tentei e nada.
Resolvi, então, relembrar o que havia feito naquele mesmo dia. Desde a hora em que abri os olhos na cama, os mínimos detalhes: tocar com os pés o chão, a primeira imagem do rosto no espelho banheiro, o pão tostado no café da manhã. Senti um prazer enorme ao recuperar o meu dia e ainda deu um soninho...
Há uns três meses, faço isso toda noite: relembrar com detalhes o que fiz ao longo do dia. Agradeço os momentos bons, reflito sobre os difíceis. Principalmente, sinto-me dona da minha vida. A correria do mundo pode continuar, eu fico. Relembrar os dias reforça o Presente.
Desejo que, em 2015, possamos reforçar nossa Presença. Só assim se vive verdadeiramente.
sábado, 27 de dezembro de 2014
domingo, 14 de dezembro de 2014
A alma penada
Minha amiga Adriana, que vive na Espanha, veio ao Rio de Janeiro visitar a família e tirou uma história do fundo do baú, que eu não conhecia: da alma penada.
No final da década de 80, morávamos na região que hoje se chama Baixo Lagoa. Os edifícios de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, a maioria tem duas entradas: uma pela Rua Alexandre Ferreira e outra pela Borges de Medeiros. Adriana morava em um desses prédios e o porteiro se chamava seu Januário, o Seu Janu.
Certo dia, voltando de uma caminhada, minha amiga resolveu entrar pela portaria da Lagoa, que era menos usada e por isso vivia fechada. Tocou o interfone e esperou o Seu Janu. Lá vem ele, mas pára, estático, e fica olhando para ela.
Toc, toc, toc (no vidro).
- Seu Janu! Abre a porta!
Seu Janu feito estátua.
Nessa hora, Adriana olha para o lado e vê: a alma penada.
- Mas como assim uma alma penada? Como ela era? – pergunto.
- Não dá para explicar...
- Mas como você sabia que era uma alma penada?
- ... A gente simplesmente sabe.
Toc, toc, toc, toc, toc! Adriana esmurra o vidro da portaria fazendo-o balançar. Grita:
- Seu Janu, abre essa porta!
Olha para o lado novamente e ... pluft! Sumiu.
Seu Januário sai do transe e destranca a fechadura. Nenhum dos dois fala nada, Adriana toma a direção da escada e sobe esbaforida.
Até hoje, quando vem ao Rio, dá de cara com Seu Januário, que ainda trabalha no bairro. Outro dia, ele parou para falar com ela.
- Adriana, que bom te ver, há quanto tempo!
Conversa vai, conversa vem, minha amiga não perde a oportunidade:
- E aquele dia em que o senhor me deixou presa na rua junto com a alma penada?
Seu Janu finge que não entende, se despedem, cada um segue seu caminho.
No final da década de 80, morávamos na região que hoje se chama Baixo Lagoa. Os edifícios de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, a maioria tem duas entradas: uma pela Rua Alexandre Ferreira e outra pela Borges de Medeiros. Adriana morava em um desses prédios e o porteiro se chamava seu Januário, o Seu Janu.
Certo dia, voltando de uma caminhada, minha amiga resolveu entrar pela portaria da Lagoa, que era menos usada e por isso vivia fechada. Tocou o interfone e esperou o Seu Janu. Lá vem ele, mas pára, estático, e fica olhando para ela.
Toc, toc, toc (no vidro).
- Seu Janu! Abre a porta!
Seu Janu feito estátua.
Nessa hora, Adriana olha para o lado e vê: a alma penada.
- Mas como assim uma alma penada? Como ela era? – pergunto.
- Não dá para explicar...
- Mas como você sabia que era uma alma penada?
- ... A gente simplesmente sabe.
Toc, toc, toc, toc, toc! Adriana esmurra o vidro da portaria fazendo-o balançar. Grita:
- Seu Janu, abre essa porta!
Olha para o lado novamente e ... pluft! Sumiu.
Seu Januário sai do transe e destranca a fechadura. Nenhum dos dois fala nada, Adriana toma a direção da escada e sobe esbaforida.
Até hoje, quando vem ao Rio, dá de cara com Seu Januário, que ainda trabalha no bairro. Outro dia, ele parou para falar com ela.
- Adriana, que bom te ver, há quanto tempo!
Conversa vai, conversa vem, minha amiga não perde a oportunidade:
- E aquele dia em que o senhor me deixou presa na rua junto com a alma penada?
Seu Janu finge que não entende, se despedem, cada um segue seu caminho.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
30 anos esta noite
Mas era ontem!... Acordar antes das seis, engolir o café, pegar o ônibus até o Leblon, saltar em frente à igreja, passar pelo porteiro baixinho com cara de padre, encarar horas e horas de matéria massacrante. Uma, duas semanas de aula em março e as provas começavam, e iam até junho sem parar. Insano.
Meu pai, zeloso com a filha única, deve ter se informado com os amigos e veio com a ordem:
- Vai estudar no Santo Agostinho.
- Quero o Princesa Isabel.
- Santo Agostinho!
No segundo ano ele morreu e me abandonou com a decisão. Eu podia ter mudado de escola, mas já havia feito laços de amizade e resolvi permanecer. Nesse mesmo ano fatídico, fiquei em recuperação pela primeira vez na vida, matemática, e passei janeiro inteiro frequentando aulas as segundas e quartas, para fazer uma prova no final do mês em que tenho certeza que não tirei a nota exigida. Mas me passaram de ano, e isso eu agradeço.
Veio o terceiro ano e as já sofridas aulas aos sábados se transformaram em provas aos sábados. Enquanto os amigos saíam à noite nas sextas, eu tinha que dormir às dez para levantar cedo e encarar avaliações de física, química, biologia... Queria morrer.
O Santo Agostinho coincidiu com um dos períodos mais duros da minha vida. A morte do pai, a doença da mãe, muita solidão. Talvez por isso não guarde lembranças claras e nenhuma foto. As colegas que organizaram a festa dos 30 pediram fotos, registros, o álbum de formatura. Não tenho nada. Não guardei nada. Nem saudade.
Mais tarde, quando um grupo de ex-colegas começou a me chamar para tomar chope, no início, não me sentia confortável. Com o tempo, passei a amar e a valorizar aquele grupo de pessoas bem parecidas comigo, bem formadas, que levam a vida com extrema seriedade e responsabilidade, segurando as barras sem fazer drama. Dizem que a escola não forma, quem molda o caráter é a família. Mas essa forma de encarar a vida é, sim, herança do Santo Agostinho.
Quando já era jornalista, fui entrevistar o antropólogo Everardo Rocha, que escolhi para meu orientador na monografia ao final do curso na faculdade. Contou que seus filhos estudavam no Santo Agostinho.
- Ai que horror, que colégio horrível, eu nunca colocaria meus filhos lá (de fato, não o fiz). Por que fez isso com os pobrezinhos?
- Porque queria formar seres humanos como você.
Assim aprendi também a sentir orgulho de responder à pergunta ‘onde você estudou?’:
- No Santo Agostinho.
Três anos de chumbo, muita pressão e pouco prazer. Três anos de tristeza e sofrimento na esfera pessoal. Mas três anos vezes dez são capazes de transmutar muita coisa. Na peneira do tempo ficaram a Amizade, a Alegria, a certeza de ser capaz.
E a linda festa dos 30 anos – impossível descrever tamanha riqueza, em todos os sentidos – foi o fechamento de um ciclo que começou lá na adolescência e que se encerrou nesta noite em que médicos, engenheiros, dentistas, publicitários, jornalistas, fonoaudiólogos, professores de educação física, profissionais e pais de família, se acabaram de dançar, se atiraram no chão para sair bem nas fotos, viraram crianças novamente, em um rito de passagem que homenageia a instituição que nos preparou tão bem – isso é uma realidade – para a batalha que é a vida.
Obrigada, Colégio Santo Agostinho. Obrigada aos colegas que organizaram a festa dos 30 anos. Muito obrigada.
Meu pai, zeloso com a filha única, deve ter se informado com os amigos e veio com a ordem:
- Vai estudar no Santo Agostinho.
- Quero o Princesa Isabel.
- Santo Agostinho!
No segundo ano ele morreu e me abandonou com a decisão. Eu podia ter mudado de escola, mas já havia feito laços de amizade e resolvi permanecer. Nesse mesmo ano fatídico, fiquei em recuperação pela primeira vez na vida, matemática, e passei janeiro inteiro frequentando aulas as segundas e quartas, para fazer uma prova no final do mês em que tenho certeza que não tirei a nota exigida. Mas me passaram de ano, e isso eu agradeço.
Veio o terceiro ano e as já sofridas aulas aos sábados se transformaram em provas aos sábados. Enquanto os amigos saíam à noite nas sextas, eu tinha que dormir às dez para levantar cedo e encarar avaliações de física, química, biologia... Queria morrer.
O Santo Agostinho coincidiu com um dos períodos mais duros da minha vida. A morte do pai, a doença da mãe, muita solidão. Talvez por isso não guarde lembranças claras e nenhuma foto. As colegas que organizaram a festa dos 30 pediram fotos, registros, o álbum de formatura. Não tenho nada. Não guardei nada. Nem saudade.
Mais tarde, quando um grupo de ex-colegas começou a me chamar para tomar chope, no início, não me sentia confortável. Com o tempo, passei a amar e a valorizar aquele grupo de pessoas bem parecidas comigo, bem formadas, que levam a vida com extrema seriedade e responsabilidade, segurando as barras sem fazer drama. Dizem que a escola não forma, quem molda o caráter é a família. Mas essa forma de encarar a vida é, sim, herança do Santo Agostinho.
Quando já era jornalista, fui entrevistar o antropólogo Everardo Rocha, que escolhi para meu orientador na monografia ao final do curso na faculdade. Contou que seus filhos estudavam no Santo Agostinho.
- Ai que horror, que colégio horrível, eu nunca colocaria meus filhos lá (de fato, não o fiz). Por que fez isso com os pobrezinhos?
- Porque queria formar seres humanos como você.
Assim aprendi também a sentir orgulho de responder à pergunta ‘onde você estudou?’:
- No Santo Agostinho.
Três anos de chumbo, muita pressão e pouco prazer. Três anos de tristeza e sofrimento na esfera pessoal. Mas três anos vezes dez são capazes de transmutar muita coisa. Na peneira do tempo ficaram a Amizade, a Alegria, a certeza de ser capaz.
E a linda festa dos 30 anos – impossível descrever tamanha riqueza, em todos os sentidos – foi o fechamento de um ciclo que começou lá na adolescência e que se encerrou nesta noite em que médicos, engenheiros, dentistas, publicitários, jornalistas, fonoaudiólogos, professores de educação física, profissionais e pais de família, se acabaram de dançar, se atiraram no chão para sair bem nas fotos, viraram crianças novamente, em um rito de passagem que homenageia a instituição que nos preparou tão bem – isso é uma realidade – para a batalha que é a vida.
Obrigada, Colégio Santo Agostinho. Obrigada aos colegas que organizaram a festa dos 30 anos. Muito obrigada.
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