domingo, 7 de agosto de 2016

O doutor Pitangão

Durante cerca de seis meses – de dezembro de 2013 a abril de 2014 – tive o privilégio e a honra de conviver com o doutor Ivo Pitanguy: a Oasys Cultural foi contratada pelas editoras Casa da Palavra e Rara para a edição de seu livro de memórias e me encarreguei da tarefa.


Pitanguy já me conhecia desde os 12 anos, quando operou minha testa após um acidente no Clube Costa Brava, relatado no post Um toque do Pitanguy. Ele se lembrava não somente disso, mas também da minha mãe, a Miss Martha, que trabalhou com ele como instrumentadora cirúrgica em mil novecentos e antigamente. Soma-se a isso a amizade com meu pai, que transformava seus feitos em páginas e páginas na revista Manchete. Enfim, várias referências. Mas nem por isso era fácil a nossa relação. Difícil e durão, o Dr. Pitangão, como me acostumei a chamá-lo não em sua presença, mas na de meus filhos, quando chegava em casa exausta das reuniões com ele.

Para começar, eu não podia chegar um minuto atrasada que lá vinha bronca: que eu não estava levando o trabalho a sério, que assim não era possível... Passei a sair de casa com mega antecedência. Na época, eu estava em litígio com o plano de saúde da Miss Martha e isso demandava um bocado de energia mental e emocional. Um dia em que estava especialmente nervosa e chateada, cheguei ao consultório dez minutos atrasada e começou a bronca. Dessa vez o profissionalismo foi por água abaixo: comecei a chorar. E o Pitangão:

- Valéria, o que foi? O que foi?

Eu não conseguia falar. E ele:

- Eu não quero te torturar, entende?

Esse Pitangão...

Após me acalmar, expliquei o que andava acontecendo e, a partir daí, começamos a nos entender melhor. Toda reunião tinha o momento do lanche, quando me oferecia chá e chocolates da Rolex. Sim, porque várias vezes havia sido jurado do Prêmio Rolex de Empreendedorismo e a empresa não se cansava de mandar-lhe mimos desde a Suíça.

Assim era a vida do Pitanguy: todas as honras, todas as glórias, tudo de mais lindo e maravilhoso, tudo do bom e do melhor que existe no mundo, esse homem provou. Fazia questão de deixar claro, mas não expunha nada além do necessário. Nenhum nome de celebridade, rei ou rainha que tenha operado. E olha que ele operou muitos. Parecia imunizado contra o vírus da vaidade. Super consciente da finitude e da morte, confidenciou:

- No dia em que eu morrer, tudo isso aqui acaba (sobre a clínica, centro de pesquisas e centro cirúrgico criados por ele, no bairro carioca de Botafogo). Já deixei ordens. Mas não vamos falar sobre isso.

Em certo ponto do trabalho, as reuniões passaram a ser em sua casa, em uma mesa junto da piscina. Eu adorava esperá-lo porque aproveitava para admirar os quadros. Um verdadeiro Louvre a casa do Dr. Pitangão. Na noite em que terminamos a edição do livro ele abriu um vinho especial de sua adega e ficamos papeando e bebericando até tarde. No fim das contas, eu amei trabalhar com o Dr. Pitanguy!

Por fim, um diálogo inesquecível. Olhando seu rosto marcado de rugas aos 90 anos, comentei:

- O senhor mesmo nunca se operou, não é, doutor Pitanguy?

Ele me olhou de um jeito diferente, olhar de médico:

- E nem você.

E completou:

- Nós nos suportamos, não é mesmo, Valéria?