quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A dobra da coberta

O mundo está passando por um momento difícil – e esse momento se alonga. Clima caótico, deslocamentos em massa, terrorismo, guerras. O Brasil também. Dengue, microcefalia, crimes ambientais, Des-Governo. Empresas fechando, demissões em massa. Um fim de ano esquisito, todo mundo ressabiado, para não dizer com medo.

Recebi aqui em casa minha amiga Célia, que é vice reitora da Universidade Federal de Ouro Preto e vive em Mariana/MG, perto de onde o mar de lama da Vale/Samarco arrasou um distrito inteiro. Por uma graça do destino, a casa onde mora com sua família não estava na rota da destruição. Mas no dia seguinte à tragédia, ela foi até o ginásio Arena Mariana para ver o que se passava. Eis o relato:

“Em 24 horas, o ginásio foi todo equipado para receber as pessoas; o povo trabalhando para ajudar os outros. Uma parte das arquibancadas era uma montanha de fraldas descartáveis. Outra parte era leite em pó, pão e biscoitos. Tivemos que mandar parar de trazer coisas para não tirar a iniciativa dos responsáveis”, contou a Célia. “Mas o que mais me impressionou foi o chão coalhado de colchonetes com travesseiro, manta e o lençol dobrado sobre a manta. O lençol dobrado, um por um!”

Os dias passaram e o que a Célia contou ficou reverberando dentro de mim. Me imaginei como uma das pessoas que haviam acabado de perder a casa, perder tudo, e apesar disso tinha uma cama limpa e arrumada – por alguém que não conhecia – para passar a primeira noite fatídica, poder me deitar, dormir, chorar.

Apesar das notícias ruins nos jornais, a humanidade vem aprendendo alguma coisa. Na base da porrada, mas estamos aprendendo.

sábado, 14 de novembro de 2015

Fascista no amor

Diz Marcia Tiburi em seu excelente e oportuno livro Como conversar com um fascista (Ed. Record), que nos dá informação e argumentos para nos defendermos do ódio, da burrice e da pobreza intelectual e de espírito que rondam por aí:

“O que chamo de fascista é um tipo (...) bastante comum. (...) O empobrecimento do qual ele é portador se deu pela perda da dimensão do diálogo. O diálogo se torna impossível quando se perde a dimensão do outro. O fascista não consegue se relacionar com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser.”

A livro se refere principalmente à esfera da política, mas não pude deixar de pensar no quanto somos fascistas em outras áreas da vida, especialmente... no amor.

As relações afetivas estão se tornando cada vez mais difíceis de se manter, cada vez mais voláteis. Desconfio que amar de verdade saiu de moda, ninguém mais se importa com isso, desde que se possa ‘ficar’ indefinidamente e assim ir preenchendo com vários personagens um lugar que nossos pais e avós preencheram com seus cônjugues.

Amar está fora de moda porque exige o esforço do diálogo – e aí entra a reflexão de Marcia Tiburi sobre o fascismo. Quando o relacionamento fica difícil, quando algo desagrada uma das partes, basta terminar e trocar. Para isso servem aplicativos como o Tinder e o Happen – cardápios de pessoas.

O diálogo entre o casal, seja ele homo ou hetero, requer paciência, persistência, enxergar e aceitar no outro aquilo que difere de nós. E nem sempre se chega logo a uma conclusão, podem ser necessárias várias rodadas de diálogos, leva tempo!

Assim é a democracia: lenta, mas uma construção verdadeira e legítima, através da qual se chega a um lugar diferente e melhor, onde todos os lados são levados em consideração, e onde se pressupõe que, após deixar nossas ‘verdades’ de lado, se conquista um consenso comum.

O livro da Marcia Tiburi serviu como um alerta para ter cuidado com a fascista que existe em mim, a Valéria impaciente, inflexível e que deseja sempre ‘ter razão’. Como diz Ferreira Gullar: “Não quero ter razão. Quero ser feliz”.



terça-feira, 2 de junho de 2015

A felicidade

Ela chega de repente e nos pega de surpresa. O tempo pára. O mundo perfeito, completo. Nada falta. Tudo bem que é passageiro. Então, temos que ficar quietinhos e aproveitar. Estar. Conforto. Logo hoje que o dia foi tão tumultuado. Um prêmio. Uma dádiva. Uma mágica.

Respiro e trato de sentir: isso é a felicidade. Um pássaro raro, pousado em um galho bem na minha frente. Cantando, limpando as penas, exercitando as asas. Para, logo voar novamente. Passou... A vida continua. Já não é completa. Algo falta. Algo incomoda. Há sempre mais o que fazer. Mas valeu. O sentimento está ali, ao alcance. Uma joia na memória.

Daqui a pouco, vai me surpreender novamente. Agora já sei como é.

domingo, 24 de maio de 2015

Vovó Sônia

Fiz as contas: na hora em que a vovô Sônia morreu no Brasil nós estávamos no restaurante chinês em Monterrey, Califórnia, às gargalhadas porque a garçonete não falava uma palavra de inglês nem de espanhol, e não conseguíamos chegar a conclusão alguma a respeito do que iríamos comer.

Na manhã seguinte, quando acordamos, veio a notícia. Havia passado por duas cirurgias muito delicadas nos últimos dias e estava sedada, dormindo. Mas naquela noite, ela partiu.

Vovó Sônia esperou a gente viajar para morrer. Sempre teve saúde frágil, estávamos acostumados aos sustos, ao vê-la se internar por uns dias, mas sempre saía e voltava à vida normal: Hortifruti às quintas feiras, quando ia dirigindo seu carro, freando e buzinando alto por qualquer motivo; hidroginástica três vezes por semana, com seu traje de surfista; cinema à tarde com o vovô Bóris.

Saímos para viajar e a deixamos viva. Foi cremada um dia antes do nosso retorno. Entre esses dois extremos, passaram-se 15 dias.

Alegria e tristeza misturaram-se naquela linda manhã em que seguimos viagem a partir de Monterrey pela Highway One. No dia anterior, conseguimos um mapa que indicava as belezas do caminho. Por iniciativa própria, sem que ninguém indicasse, decidimos parar em um parque estadual à beira mar chamado Point Lobos, considerado um refúgio de leões marinhos. Chegamos lá antes das oito, quando o sol ainda começava a esquentar. Caminhamos em silêncio pelas trilhas em meio a campos de margaridas, penetramos num bosque de ciprestes retorcidos, esparramados sob ação do vento. O mar era azul turquesa, azul esmeralda, e lá embaixo víamos os leões marinhos com as cabecinhas para fora d´água, olhando-nos de longe, quietinhos à luz da manhã. Nesse lindo lugar, cada um de nós, a sua maneira, se despediu da vovó, dos almoços que preparava com tanto prazer, dos guefilte fish e kneidales em Hosh Hashaná e Pessach.

Faz muita falta a vovó. O fato de não a termos visto doente, hospitalizada, morta, confere uma sensação de irrealidade ao fato. Melhor assim, talvez.

Abaixo, eu e a Sônia no lançamento da Pausa do Tempo em setembro de 2013.

domingo, 10 de maio de 2015

O anjo

A médica pediu uma tomografia do abdômen e tórax. Raio X completo para enxergar tudo por dentro. Cinco anos sem um check up completo e um histórico familiar, por parte de pai, repleto de mortes por câncer. Meu próprio pai partiu dessa maneira, um jeito bem sofrido de morrer e de assistir alguém morrer. Lembro da minha tia, irmã dele, que morreu de velha (!), dizendo com sotaque gaúcho:

- Te cuida, minha filha, te cuida!...

Lá fui eu fazer o exame. Injetam um líquido branco através de tubos nas veias. A gente se deita espichada, lembrei da minha gata, quando foi castrada. Olhei através da janelinha da clínica e a vi deitada igual a mim, as patinhas amarradas enquanto lhe sacavam o útero e ovários. Lembrei do meu pai e da minha avó, lá no céu, e senti muito medo.

Lá vem o resultado. Um dia antes de ir buscar, compartilhei meus pesares com minha amiga Adriana (a mesma do post A alma penada), que rebateu:

- Tá maluca? O anjo não ia deixar...

- Que anjo?

- O nosso anjo, ora. Ele sabe tudo que se passa com a gente. Não ia deixar nada de mal acontecer, você vai ver.

Não tive coragem de abrir o envelope branco, enorme. Deixei direto na portaria da médica. E tome esperar. Quando não aguentava mais, mandei torpedo: ‘Deixei o resultado da tomografia na sua portaria, você viu?’ Quase dez da noite chega a resposta: ‘Amanhã converso com você’.

Um baque. Uma noite em apavorado torpor. ‘Ela encontrou algo. Por que não? É a coisa mais comum do mundo essa doença. Muitos amigos tem ou tiveram. A maioria está viva. Por que não comigo?’ Torvelinho de pensamentos, suores, estômago contraído. Manhã seguinte, ressacada de sono, corri atrás da médica. Finalmente conseguimos falar. Não respondeu antes porque não tivera tempo de ‘analisar’ os resultados.

Descobri que, da mesma forma que a vida marca por fora, marca dentro também. Riscos, rugas, sinais. Esse exame é f... mostra tudo! Meu corpo já não é o de um bebê. Mas, dentre tudo que se viu, nada grave. Nada estranho. Nada com o que se preocupar de verdade.

Ufa!... O anjo... Obrigada, obrigada, obrigada.