domingo, 12 de março de 2017

Dia que termina

Mais um dia está terminando e nunca mais vai voltar. Deitada no sofá observo as sombras avançarem pela casa preenchendo espaços, denunciando vazios, ocupando-os, desvelando-os. Em cada vazio algo que não foi dito ou feito, o passado cheio de buracos, calombos, terreno acidentado, sem vegetação, terra remexida e infértil, refugo de mineração.

Entre os dejetos, a surpresa ao atravessar a rua ontem. Nas feições irreconhecíveis um quê indecifrável e inalcançável, nada concreto, um fio vindo lá do fundo, de muito muito longe para o agora. Um tremor, um susto: era ele. Devastado, a barriga proeminente, cabelos brancos. Mas no olhar surpreso e vivo, a certeza.

Levanto devagar, o gato se aproxima miando, esfregando-se em minhas pernas finas e descarnadas, manchadas de sol, meias emboladas nos tornozelos. Deixo cair uma das mãos e faço-lhe cafuné nas orelhas. O céu está cor de rosa, principiando o lilás. Quando criança, gostava do céu assim – “é calor que vem vindo” dizia minha avó, e eu me alegrava por mais um dia para brincar no jardim.
Olho ao redor. À luz do crepúsculo a sala parece uma fotografia em sépia, os enfeites cada um em seu lugar, as plantas imóveis com se estátuas fossem. Não tem vento. Até o gato se sentou e parece um bibelô. Há que me levantar, ver algo para comer, assistir a novela... Mas o tempo parou e naquele olhar ao atravessar a rua, o assombro.

Nós dois deitados juntos, muito juntos no chão, a mão dele entre as minhas pernas. Foi parar ali sem que eu percebesse, quando dei por mim já estava encaixada e era tão perfeita, suave e confortável que não tive coragem de me esquivar, sequer de protestar. Principiei a mexer-me devagarinho, ajudando-o quase sem força, quase sem nada, a afinar meu instrumento mais raro e delicado, como se um músico muito hábil fosse.

A irmã dele de papo com a amiga na cama, TV ligada, bolo no forno, todo mundo fingindo que fazia uma coisa que na verdade era outra. Mas o tempo e o espaço eram ofertados a nós – a privacidade, o respeito de fingir não ver, e deixar-nos estar e sentir até o mundo virar e desvirar do avesso, a TV, a irmã, o papo, o bolo – tudo desaparecer e reaparecer menos importantes. E mão dele lá, molhada e firme, pulsando feito um coração no centro de mim.

Estremeço. É quase noite. Mais um dia está terminando e nunca mais vai voltar.

(Exercício para a Oficina Literária Ivan Proença)