Não ligo para roupa, maquiagem, joias... Meus luxos são viajar e ir a shows de rock. Para isso eu economizo e invisto.
Realizei no dia 21 de setembro, véspera da entrada da Primavera, um sonho que julgava perdido: assistir a banca de rock The Who no Brasil. Primeira vez deles na América Latina em mais de 50 anos de carreira. Os caras estão com 77 anos. Pensei que ou eles ou eu morreríamos sem que isso acontecesse.
Eu acredito em milagres. Passei a adolescência sonhando assistir o Led Zeppelin, que já havia acabado com a morte do baterista John Bonham. Passaram os anos e assisti Robert Plant num Hollywood Rock. Todas as músicas do Led bem ali na minha frente, com sua voz original. Chorei e agradeci. Passaram mais alguns anos e vieram juntos, Page e Plant. Se houvesse espaço, eu me atiraria no chão da Praça da Apoteose para agradecer mais uma vez. Depois disso, ainda tive a oportunidade de conhecer Jimmy Page, tirar foto com ele e ganhar um autógrafo em meu CD Led Zeppelin IV: To Valéria, Whole Lotta Love. Sou uma abençoada.
Agora, The Who. Que eu ouvia na vitrola que herdei de meu pai. Que minha mãe me levou para assistir no cinema aos nove anos – obrigada, mamãe – e eu ‘fechei’ ali com o rock n´roll, encantada com o garoto surdo, bobo e cego chamado Tommy. Que ouço até hoje, assim como Quadrophenia, meu preferido.
Noite perfeita. Roger Daltrey com uma super-voz girando o microfone no ar como sempre fez. Pete Towsend muito jovial largando o braço em riffs eternos. Eles valorizam e expõem sua trajetória em imagens belíssimas no telão por trás da banda: Londres dos 60´s and 70´s, garotos terninho e lambreta, show caseiro deles com uns 16 anos e a galera já dançando até o chão. Fotos de várias épocas com tratamento psicodélico. Lindas imagens de natureza tratadas e remodeladas para combinar com as musicas. Um tratado pacifista na sequencia de Quadrophenia que termina com Love, Reign O'er Me. Tudo que eu sonhava e muito mais. Obrigada.
Only love
Can make it rain
The way the beach is kissed by the sea
Only love
Can make it rain
Like the sweat of lovers
Laying in the fields.
Love, Reign o'er me
Love, Reign o'er me, rain on me
Only love
Can bring the rain
That makes you yearn to the sky
Only love
Can bring the rain
That falls like tears from on high
Love Reign O'er me
On the dry and dusty road
The nights we spend apart alone
I need to get back home to cool cool rain
I can't sleep and I lay and I think
The night is hot and black as ink
Oh God, I need a drink of cool cool rain
sexta-feira, 22 de setembro de 2017
domingo, 20 de agosto de 2017
Monsieur e Madame Adelman
“Com um pouco de humor e imaginação, é incrível o que passa entre duas pessoas”. Essa frase de Madame Adelman sintetiza o filme Monsieur e Madame Adelman, uma tragicomédia inusitada sobre tudo o que pode acontecer – e eventualmente acontece – em um casamento.
“E foram felizes para sempre” é a enigmática frase que encerra os contos de fadas. Ao longo da vida ouvia comentários de gente mais velha e experiente – ‘É aí que começa a verdadeira história’ – e ficava intrigada. Pensava que uma vez juntos, o casal desfrutava uma vida feliz e harmoniosa até o fim dos tempos. O índice elevado de separações leva a crer que não é bem assim. Não estamos presentes no dia a dia de um casal, mas para que se separem algo muito grave deve acontecer.
Monsieur e Madame Adelman mostra justamente a intimidade entre duas pessoas que se amam muito. Em um relacionamento esse amor se estica, deforma, alarga, esquenta, esfria. Impressionante e assustador. Principalmente porque nos reconhecemos nos papéis – quer dizer, eu me reconheci agora que trilhei uma boa parte da estrada e conheço algo da vida.
Não é um filme contra o casamento – apesar da lavação de roupa suja que presenciamos. É a favor do amor e do relacionamento, com todos os desafios, dores e prazeres que este possa suscitar. Transformador. Ainda mais nesses tempos de intolerância e impermanência, quando tudo muda com um clique, inclusive as relações, quiçá, amorosas.
“E foram felizes para sempre” é a enigmática frase que encerra os contos de fadas. Ao longo da vida ouvia comentários de gente mais velha e experiente – ‘É aí que começa a verdadeira história’ – e ficava intrigada. Pensava que uma vez juntos, o casal desfrutava uma vida feliz e harmoniosa até o fim dos tempos. O índice elevado de separações leva a crer que não é bem assim. Não estamos presentes no dia a dia de um casal, mas para que se separem algo muito grave deve acontecer.
Monsieur e Madame Adelman mostra justamente a intimidade entre duas pessoas que se amam muito. Em um relacionamento esse amor se estica, deforma, alarga, esquenta, esfria. Impressionante e assustador. Principalmente porque nos reconhecemos nos papéis – quer dizer, eu me reconheci agora que trilhei uma boa parte da estrada e conheço algo da vida.
Não é um filme contra o casamento – apesar da lavação de roupa suja que presenciamos. É a favor do amor e do relacionamento, com todos os desafios, dores e prazeres que este possa suscitar. Transformador. Ainda mais nesses tempos de intolerância e impermanência, quando tudo muda com um clique, inclusive as relações, quiçá, amorosas.
domingo, 11 de junho de 2017
Tempo leva, tempo traz
Sábado, 13 de abril de 2005
Hoje ele finalmente saiu de casa. Combinamos que eu iria sair com as crianças para ele vir buscar suas coisas. Foi horrível. No teatro, encontramos um coleguinha do Arthur, cujo irmão mais velho tem a mesma idade do Anderson. A mãe convidou os dois para irem a casa dela assistir filmes e brincar, e eles toparam. Tive que voltar sozinha e, quando cheguei, ele já tinha saído com tudo.
Fui até o quarto, abri a porta do armário – vazio. Abri todas as portas dos armários, só as minhas coisas continuavam no exato lugar, a parte dele, completamente oca. Foi-se tudo: ternos, camisas, cuecas, documentos, objetos. Não restou nada. Fiquei muito tempo agachada no chão, chorando. Olhando aquele vazio. É assim que minha vida está agora.
Segunda-feira, 15 de abril de 2005
Hoje o Arthur ficou doente, com febre. Não queria levantar da cama e, quando pus a mão na testinha dele, estava queimando. Não tem sintomas de gripe nem nada. Virose. Ou então, falta do pai. Esse é o meu palpite.
Roberto veio ontem e conversamos os quatro. Deixei ele falar. Explicou que papai e mamãe ainda se gostam, mas como amigos, e que por isso decidimos morar em casas diferentes, mas continuamos juntos. MENTIRA! FILHO DA PUTA! SAFADO! Mentindo para os filhos. Um dia eles vão saber a verdade! Se ele mesmo não contar, eu vou contar!
Por hora preciso me controlar porque os meninos não tem nada a ver com isso. São dois anjinhos inocentes. Tenho que preservar a inocência deles. Não vou jogá-los contra o pai, muito embora ele mereça isso. Bosta!
Terça-feira, 10 de maio de 2005
Hoje eu fui demitida. Quando as coisas estão ruins, podem ficar ainda piores. Não devemos reclamar. Pois é. Estou arrasada.
Fui chamada na sala do diretor, ele me perguntou o que eu fazia e eu não soube responder, comecei a chorar. Ele me ofereceu um lenço de papel e mandou que eu voltasse para minha sala. Ele sabe que eu me separei. No final do dia recebi o email agradecendo todos os serviços prestados etc. Puta merda! Não é possível, separação e demissão com um mês de diferença. A pensão terá que aumentar. Roberto vai ter que se virar. Senão, vamos passar fome.
Domingo, 20 de junho de 2005
Voltei do clube com as crianças e o Roberto ligou e pediu para pegá-los, e que dormissem lá com ele. Eu deixei, pelo bem das crianças, acho bom que fiquem com o pai sempre que ele quiser. Mas, de repente, me vi sozinha em pleno domingo à tarde. Situação tenebrosa: o dia caindo, a rua sem nenhum movimento, o barulho do jogo de futebol no vizinho. Tive vontade de dar um tiro na cabeça – se eu tivesse uma arma. Não teria coragem de fazer isso. Mas o sentimento era esse.
Sábado, 9 de julho de 2015
Fui mexer na minha pasta de guardados. Encontrei uma foto de quando a gente era adolescente, eu e Roberto: ele com cara de recém-nascido, eu magra feito um vara-pau. A gente se conhece há quase 20 anos. Parece que foi outro dia que ele me mandou o bilhetinho na sala de aula: ‘quer namorar comigo?’ Eu já esperava ansiosa e respondi ‘sim’, e desenhei um coraçãozinho e uma florzinha ao lado. Quanta coisa passou desde então. Quanta vida. Durante mais de dez anos fomos muito felizes. A viagem à Paris. As minhas duas gestações. O nascimento das crianças. Eu me sentia completa. Não precisava de mais nada. Agora, por mais que eu tente, não consigo entender como algo que era tão bom e tão lindo, pode se transformar em outra coisa tão feia e nojenta. Sinceramente, hoje eu tenho nojo do Roberto.
Domingo, 8 de setembro de 2005
Ontem eu finalmente consegui sair à noite com as amigas, fomos dançar forró. Eu conheci o Cássio em transei pela primeira vez em quase um ano! Trepada maravilhosa! Tesão! Não acredito como pude ficar tanto tempo sem sexo. Na verdade, eu estava assexuada. Era tanta tristeza, tantos problemas, que me apaguei. Mas agora renasci. Fênix! Chega de saudade! Trocamos telefones, se ele não ligar, eu vou ligar. Decidi!
O merda do Roberto está com a pensão atrasada pelo terceiro mês consecutivo. Tudo bem que eu estou me virando com o negócio das saladas delivery em casa, uma confusão danada na minha cozinha, mas está dando certo. Estou ganhando dinheiro, ele sabe, e por isso está de sacanagem. Vou à justiça! Essa é outra decisão.
26 de fevereiro de 2006
Após muito tempo sem escrever, um motivo especial: hoje o Roberto voltou para casa. O armário vazio, que não cheguei a preencher, novamente com as coisas dele. Precisa ver a alegria dos meninos. Não paravam de pular agarrados as pernas dele. Fiquei quieta no meu canto. Aceitei ele de volta, mas já disse: terá que me reconquistar.
Difícil descrever como me sinto... Mas tenho que reconhecer: em paz.
Exercício sobre o "Tempo" para a Oficina Literária de Ivan Cavalcanti Proença
Hoje ele finalmente saiu de casa. Combinamos que eu iria sair com as crianças para ele vir buscar suas coisas. Foi horrível. No teatro, encontramos um coleguinha do Arthur, cujo irmão mais velho tem a mesma idade do Anderson. A mãe convidou os dois para irem a casa dela assistir filmes e brincar, e eles toparam. Tive que voltar sozinha e, quando cheguei, ele já tinha saído com tudo.
Fui até o quarto, abri a porta do armário – vazio. Abri todas as portas dos armários, só as minhas coisas continuavam no exato lugar, a parte dele, completamente oca. Foi-se tudo: ternos, camisas, cuecas, documentos, objetos. Não restou nada. Fiquei muito tempo agachada no chão, chorando. Olhando aquele vazio. É assim que minha vida está agora.
Segunda-feira, 15 de abril de 2005
Hoje o Arthur ficou doente, com febre. Não queria levantar da cama e, quando pus a mão na testinha dele, estava queimando. Não tem sintomas de gripe nem nada. Virose. Ou então, falta do pai. Esse é o meu palpite.
Roberto veio ontem e conversamos os quatro. Deixei ele falar. Explicou que papai e mamãe ainda se gostam, mas como amigos, e que por isso decidimos morar em casas diferentes, mas continuamos juntos. MENTIRA! FILHO DA PUTA! SAFADO! Mentindo para os filhos. Um dia eles vão saber a verdade! Se ele mesmo não contar, eu vou contar!
Por hora preciso me controlar porque os meninos não tem nada a ver com isso. São dois anjinhos inocentes. Tenho que preservar a inocência deles. Não vou jogá-los contra o pai, muito embora ele mereça isso. Bosta!
Terça-feira, 10 de maio de 2005
Hoje eu fui demitida. Quando as coisas estão ruins, podem ficar ainda piores. Não devemos reclamar. Pois é. Estou arrasada.
Fui chamada na sala do diretor, ele me perguntou o que eu fazia e eu não soube responder, comecei a chorar. Ele me ofereceu um lenço de papel e mandou que eu voltasse para minha sala. Ele sabe que eu me separei. No final do dia recebi o email agradecendo todos os serviços prestados etc. Puta merda! Não é possível, separação e demissão com um mês de diferença. A pensão terá que aumentar. Roberto vai ter que se virar. Senão, vamos passar fome.
Domingo, 20 de junho de 2005
Voltei do clube com as crianças e o Roberto ligou e pediu para pegá-los, e que dormissem lá com ele. Eu deixei, pelo bem das crianças, acho bom que fiquem com o pai sempre que ele quiser. Mas, de repente, me vi sozinha em pleno domingo à tarde. Situação tenebrosa: o dia caindo, a rua sem nenhum movimento, o barulho do jogo de futebol no vizinho. Tive vontade de dar um tiro na cabeça – se eu tivesse uma arma. Não teria coragem de fazer isso. Mas o sentimento era esse.
Sábado, 9 de julho de 2015
Fui mexer na minha pasta de guardados. Encontrei uma foto de quando a gente era adolescente, eu e Roberto: ele com cara de recém-nascido, eu magra feito um vara-pau. A gente se conhece há quase 20 anos. Parece que foi outro dia que ele me mandou o bilhetinho na sala de aula: ‘quer namorar comigo?’ Eu já esperava ansiosa e respondi ‘sim’, e desenhei um coraçãozinho e uma florzinha ao lado. Quanta coisa passou desde então. Quanta vida. Durante mais de dez anos fomos muito felizes. A viagem à Paris. As minhas duas gestações. O nascimento das crianças. Eu me sentia completa. Não precisava de mais nada. Agora, por mais que eu tente, não consigo entender como algo que era tão bom e tão lindo, pode se transformar em outra coisa tão feia e nojenta. Sinceramente, hoje eu tenho nojo do Roberto.
Domingo, 8 de setembro de 2005
Ontem eu finalmente consegui sair à noite com as amigas, fomos dançar forró. Eu conheci o Cássio em transei pela primeira vez em quase um ano! Trepada maravilhosa! Tesão! Não acredito como pude ficar tanto tempo sem sexo. Na verdade, eu estava assexuada. Era tanta tristeza, tantos problemas, que me apaguei. Mas agora renasci. Fênix! Chega de saudade! Trocamos telefones, se ele não ligar, eu vou ligar. Decidi!
O merda do Roberto está com a pensão atrasada pelo terceiro mês consecutivo. Tudo bem que eu estou me virando com o negócio das saladas delivery em casa, uma confusão danada na minha cozinha, mas está dando certo. Estou ganhando dinheiro, ele sabe, e por isso está de sacanagem. Vou à justiça! Essa é outra decisão.
26 de fevereiro de 2006
Após muito tempo sem escrever, um motivo especial: hoje o Roberto voltou para casa. O armário vazio, que não cheguei a preencher, novamente com as coisas dele. Precisa ver a alegria dos meninos. Não paravam de pular agarrados as pernas dele. Fiquei quieta no meu canto. Aceitei ele de volta, mas já disse: terá que me reconquistar.
Difícil descrever como me sinto... Mas tenho que reconhecer: em paz.
Exercício sobre o "Tempo" para a Oficina Literária de Ivan Cavalcanti Proença
domingo, 12 de março de 2017
Dia que termina
Mais um dia está terminando e nunca mais vai voltar. Deitada no sofá observo as sombras avançarem pela casa preenchendo espaços, denunciando vazios, ocupando-os, desvelando-os. Em cada vazio algo que não foi dito ou feito, o passado cheio de buracos, calombos, terreno acidentado, sem vegetação, terra remexida e infértil, refugo de mineração.
Entre os dejetos, a surpresa ao atravessar a rua ontem. Nas feições irreconhecíveis um quê indecifrável e inalcançável, nada concreto, um fio vindo lá do fundo, de muito muito longe para o agora. Um tremor, um susto: era ele. Devastado, a barriga proeminente, cabelos brancos. Mas no olhar surpreso e vivo, a certeza.
Levanto devagar, o gato se aproxima miando, esfregando-se em minhas pernas finas e descarnadas, manchadas de sol, meias emboladas nos tornozelos. Deixo cair uma das mãos e faço-lhe cafuné nas orelhas. O céu está cor de rosa, principiando o lilás. Quando criança, gostava do céu assim – “é calor que vem vindo” dizia minha avó, e eu me alegrava por mais um dia para brincar no jardim.
Olho ao redor. À luz do crepúsculo a sala parece uma fotografia em sépia, os enfeites cada um em seu lugar, as plantas imóveis com se estátuas fossem. Não tem vento. Até o gato se sentou e parece um bibelô. Há que me levantar, ver algo para comer, assistir a novela... Mas o tempo parou e naquele olhar ao atravessar a rua, o assombro.
Nós dois deitados juntos, muito juntos no chão, a mão dele entre as minhas pernas. Foi parar ali sem que eu percebesse, quando dei por mim já estava encaixada e era tão perfeita, suave e confortável que não tive coragem de me esquivar, sequer de protestar. Principiei a mexer-me devagarinho, ajudando-o quase sem força, quase sem nada, a afinar meu instrumento mais raro e delicado, como se um músico muito hábil fosse.
A irmã dele de papo com a amiga na cama, TV ligada, bolo no forno, todo mundo fingindo que fazia uma coisa que na verdade era outra. Mas o tempo e o espaço eram ofertados a nós – a privacidade, o respeito de fingir não ver, e deixar-nos estar e sentir até o mundo virar e desvirar do avesso, a TV, a irmã, o papo, o bolo – tudo desaparecer e reaparecer menos importantes. E mão dele lá, molhada e firme, pulsando feito um coração no centro de mim.
Estremeço. É quase noite. Mais um dia está terminando e nunca mais vai voltar.
(Exercício para a Oficina Literária Ivan Proença)
Entre os dejetos, a surpresa ao atravessar a rua ontem. Nas feições irreconhecíveis um quê indecifrável e inalcançável, nada concreto, um fio vindo lá do fundo, de muito muito longe para o agora. Um tremor, um susto: era ele. Devastado, a barriga proeminente, cabelos brancos. Mas no olhar surpreso e vivo, a certeza.
Levanto devagar, o gato se aproxima miando, esfregando-se em minhas pernas finas e descarnadas, manchadas de sol, meias emboladas nos tornozelos. Deixo cair uma das mãos e faço-lhe cafuné nas orelhas. O céu está cor de rosa, principiando o lilás. Quando criança, gostava do céu assim – “é calor que vem vindo” dizia minha avó, e eu me alegrava por mais um dia para brincar no jardim.
Olho ao redor. À luz do crepúsculo a sala parece uma fotografia em sépia, os enfeites cada um em seu lugar, as plantas imóveis com se estátuas fossem. Não tem vento. Até o gato se sentou e parece um bibelô. Há que me levantar, ver algo para comer, assistir a novela... Mas o tempo parou e naquele olhar ao atravessar a rua, o assombro.
Nós dois deitados juntos, muito juntos no chão, a mão dele entre as minhas pernas. Foi parar ali sem que eu percebesse, quando dei por mim já estava encaixada e era tão perfeita, suave e confortável que não tive coragem de me esquivar, sequer de protestar. Principiei a mexer-me devagarinho, ajudando-o quase sem força, quase sem nada, a afinar meu instrumento mais raro e delicado, como se um músico muito hábil fosse.
A irmã dele de papo com a amiga na cama, TV ligada, bolo no forno, todo mundo fingindo que fazia uma coisa que na verdade era outra. Mas o tempo e o espaço eram ofertados a nós – a privacidade, o respeito de fingir não ver, e deixar-nos estar e sentir até o mundo virar e desvirar do avesso, a TV, a irmã, o papo, o bolo – tudo desaparecer e reaparecer menos importantes. E mão dele lá, molhada e firme, pulsando feito um coração no centro de mim.
Estremeço. É quase noite. Mais um dia está terminando e nunca mais vai voltar.
(Exercício para a Oficina Literária Ivan Proença)
terça-feira, 1 de novembro de 2016
O fim do amor
A literatura é pródiga na produção de obras que espelham o fim do amor: Todas as histórias de amor terminam mal (Luciano Trigo, Ed. Sulina, 1990), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (João Paulo Cuenca, Cia das Letras, 2010), para citar dois títulos que me vem à memória.
O fim do amor é como fim de Carnaval: lixo por todos os lados, pedaços de fantasias rasgados no chão. Resta se recolher e chorar porque a folia acabou.
A grande pergunta é: como algo que começou tão bem pode terminar tão mal? Como algo que começou tão lindo pode terminar tão feio?
Não tem explicação. O único consolo é que não estamos sós. Por mais que tudo corra de maneira civilizada, mesmo que o casal se torne amigo, o fim de algo que se imaginava perfeito e sagrado é sempre catastrófico, dramático, uma hecatombe na vida pessoal.
Então, por que alguns insistem em buscar o Amor? Não basta todo desprazer? Não basta o sofrimento que parece não ter fim?
Creio que a causa é a certeza atávica, que ainda resiste em cada um de nós, de que a sina do ser humano é ser feliz.
Eu acredito nisso.
Mas nós atrapalhamos tudo.
O fim do amor é como fim de Carnaval: lixo por todos os lados, pedaços de fantasias rasgados no chão. Resta se recolher e chorar porque a folia acabou.
A grande pergunta é: como algo que começou tão bem pode terminar tão mal? Como algo que começou tão lindo pode terminar tão feio?
Não tem explicação. O único consolo é que não estamos sós. Por mais que tudo corra de maneira civilizada, mesmo que o casal se torne amigo, o fim de algo que se imaginava perfeito e sagrado é sempre catastrófico, dramático, uma hecatombe na vida pessoal.
Então, por que alguns insistem em buscar o Amor? Não basta todo desprazer? Não basta o sofrimento que parece não ter fim?
Creio que a causa é a certeza atávica, que ainda resiste em cada um de nós, de que a sina do ser humano é ser feliz.
Eu acredito nisso.
Mas nós atrapalhamos tudo.
domingo, 7 de agosto de 2016
O doutor Pitangão
Durante cerca de seis meses – de dezembro de 2013 a abril de 2014 – tive o privilégio e a honra de conviver com o doutor Ivo Pitanguy: a Oasys Cultural foi contratada pelas editoras Casa da Palavra e Rara para a edição de seu livro de memórias e me encarreguei da tarefa.
Pitanguy já me conhecia desde os 12 anos, quando operou minha testa após um acidente no Clube Costa Brava, relatado no post Um toque do Pitanguy. Ele se lembrava não somente disso, mas também da minha mãe, a Miss Martha, que trabalhou com ele como instrumentadora cirúrgica em mil novecentos e antigamente. Soma-se a isso a amizade com meu pai, que transformava seus feitos em páginas e páginas na revista Manchete. Enfim, várias referências. Mas nem por isso era fácil a nossa relação. Difícil e durão, o Dr. Pitangão, como me acostumei a chamá-lo não em sua presença, mas na de meus filhos, quando chegava em casa exausta das reuniões com ele.
Para começar, eu não podia chegar um minuto atrasada que lá vinha bronca: que eu não estava levando o trabalho a sério, que assim não era possível... Passei a sair de casa com mega antecedência. Na época, eu estava em litígio com o plano de saúde da Miss Martha e isso demandava um bocado de energia mental e emocional. Um dia em que estava especialmente nervosa e chateada, cheguei ao consultório dez minutos atrasada e começou a bronca. Dessa vez o profissionalismo foi por água abaixo: comecei a chorar. E o Pitangão:
- Valéria, o que foi? O que foi?
Eu não conseguia falar. E ele:
- Eu não quero te torturar, entende?
Esse Pitangão...
Após me acalmar, expliquei o que andava acontecendo e, a partir daí, começamos a nos entender melhor. Toda reunião tinha o momento do lanche, quando me oferecia chá e chocolates da Rolex. Sim, porque várias vezes havia sido jurado do Prêmio Rolex de Empreendedorismo e a empresa não se cansava de mandar-lhe mimos desde a Suíça.
Assim era a vida do Pitanguy: todas as honras, todas as glórias, tudo de mais lindo e maravilhoso, tudo do bom e do melhor que existe no mundo, esse homem provou. Fazia questão de deixar claro, mas não expunha nada além do necessário. Nenhum nome de celebridade, rei ou rainha que tenha operado. E olha que ele operou muitos. Parecia imunizado contra o vírus da vaidade. Super consciente da finitude e da morte, confidenciou:
- No dia em que eu morrer, tudo isso aqui acaba (sobre a clínica, centro de pesquisas e centro cirúrgico criados por ele, no bairro carioca de Botafogo). Já deixei ordens. Mas não vamos falar sobre isso.
Em certo ponto do trabalho, as reuniões passaram a ser em sua casa, em uma mesa junto da piscina. Eu adorava esperá-lo porque aproveitava para admirar os quadros. Um verdadeiro Louvre a casa do Dr. Pitangão. Na noite em que terminamos a edição do livro ele abriu um vinho especial de sua adega e ficamos papeando e bebericando até tarde. No fim das contas, eu amei trabalhar com o Dr. Pitanguy!
Por fim, um diálogo inesquecível. Olhando seu rosto marcado de rugas aos 90 anos, comentei:
- O senhor mesmo nunca se operou, não é, doutor Pitanguy?
Ele me olhou de um jeito diferente, olhar de médico:
- E nem você.
E completou:
- Nós nos suportamos, não é mesmo, Valéria?
Pitanguy já me conhecia desde os 12 anos, quando operou minha testa após um acidente no Clube Costa Brava, relatado no post Um toque do Pitanguy. Ele se lembrava não somente disso, mas também da minha mãe, a Miss Martha, que trabalhou com ele como instrumentadora cirúrgica em mil novecentos e antigamente. Soma-se a isso a amizade com meu pai, que transformava seus feitos em páginas e páginas na revista Manchete. Enfim, várias referências. Mas nem por isso era fácil a nossa relação. Difícil e durão, o Dr. Pitangão, como me acostumei a chamá-lo não em sua presença, mas na de meus filhos, quando chegava em casa exausta das reuniões com ele.
Para começar, eu não podia chegar um minuto atrasada que lá vinha bronca: que eu não estava levando o trabalho a sério, que assim não era possível... Passei a sair de casa com mega antecedência. Na época, eu estava em litígio com o plano de saúde da Miss Martha e isso demandava um bocado de energia mental e emocional. Um dia em que estava especialmente nervosa e chateada, cheguei ao consultório dez minutos atrasada e começou a bronca. Dessa vez o profissionalismo foi por água abaixo: comecei a chorar. E o Pitangão:
- Valéria, o que foi? O que foi?
Eu não conseguia falar. E ele:
- Eu não quero te torturar, entende?
Esse Pitangão...
Após me acalmar, expliquei o que andava acontecendo e, a partir daí, começamos a nos entender melhor. Toda reunião tinha o momento do lanche, quando me oferecia chá e chocolates da Rolex. Sim, porque várias vezes havia sido jurado do Prêmio Rolex de Empreendedorismo e a empresa não se cansava de mandar-lhe mimos desde a Suíça.
Assim era a vida do Pitanguy: todas as honras, todas as glórias, tudo de mais lindo e maravilhoso, tudo do bom e do melhor que existe no mundo, esse homem provou. Fazia questão de deixar claro, mas não expunha nada além do necessário. Nenhum nome de celebridade, rei ou rainha que tenha operado. E olha que ele operou muitos. Parecia imunizado contra o vírus da vaidade. Super consciente da finitude e da morte, confidenciou:
- No dia em que eu morrer, tudo isso aqui acaba (sobre a clínica, centro de pesquisas e centro cirúrgico criados por ele, no bairro carioca de Botafogo). Já deixei ordens. Mas não vamos falar sobre isso.
Em certo ponto do trabalho, as reuniões passaram a ser em sua casa, em uma mesa junto da piscina. Eu adorava esperá-lo porque aproveitava para admirar os quadros. Um verdadeiro Louvre a casa do Dr. Pitangão. Na noite em que terminamos a edição do livro ele abriu um vinho especial de sua adega e ficamos papeando e bebericando até tarde. No fim das contas, eu amei trabalhar com o Dr. Pitanguy!
Por fim, um diálogo inesquecível. Olhando seu rosto marcado de rugas aos 90 anos, comentei:
- O senhor mesmo nunca se operou, não é, doutor Pitanguy?
Ele me olhou de um jeito diferente, olhar de médico:
- E nem você.
E completou:
- Nós nos suportamos, não é mesmo, Valéria?
domingo, 17 de julho de 2016
Itacoatiaras do Ingá (último post sobre a viagem à Paraíba)
Na chegada a João Pessoa, vi no aeroporto fotos de atrações turísticas da Paraíba, dentre elas, uma pedra com inscrições lindíssimas, lembrando a arte de Tarsila do Amaral. Dizia a legenda: Itacoatiaras do Ingá. Comentei com minha anfitriã, a escritora paraibana Marília Arnaud – que assina a apresentação do livro que reúne textos deste blog – e ela imediatamente tratou de se informar para realizar o meu desejo de conhecer a ‘pedra pintada’ (significado de Itacoatiara, termo indígena).
Ao final da jornada em Campina Grande, partimos para Ingá, cidade às bordas do sertão. Chegando lá, encontramos o parque fechado – muito embora a internet dissesse que estaria aberto de oito da manhã às quatro da tarde, aos domingos. Era perto do meio dia. Uma casa de família, a cerca de 200 metros, funcionava como restaurante a todo vapor. Fomos até lá e informaram que o secretário de turismo, Vavá da Luz, tinha ido almoçar na cidade e mandara fechar o parque. Pedi o telefone da autoridade e toca a ligar, ligar, e nada. Vavá não atendia. Na falta de alternativa – e tendo que embarcar de volta para casa dentro de algumas horas –, encontramos o jeitinho brasileiro de entrar: por um buraco na grade do parque. Lá fomos nós, Marília na frente. Parahyba é terra de mulher valente, sô!
A Itacoatiara fica em meio ao leito de um rio muito bonito, onde pastam cavalos e bois. É uma pedra larga com a forma de um lagarto. As inscrições tomam toda uma encosta plana e vertical, como se fosse um mural. O incrível é que não se trata de pinturas rupestres, como na maioria dos sítios arqueológicos, mas de gravações em baixo relevo na pedra. Sulcos arredondados, suaves. Formas tão modernas quanto a arte da Tarsila. Vislumbro um lagarto, um abacaxi, um sol. Junto de nossos pés, estrelas. A constelação de Orion, explicam mais tarde.
Nisso vem chegando Ana Bela, amiga da Marília, com um casal.
- Olha aqui, esse moço é da polícia, agora vocês expliquem como conseguiram entrar...
Brincadeirinha...
Um rapaz autorizado por Vavá veio e abriu o portão do parque. Nem se incomodou com a nossa invasão, deu risada – Ó meu Brasil! Contou que arqueólogos do mundo inteiro já estiveram ali estudando as inscrições. Alguém disse que datam de 5 mil antes de Cristo. Ninguém sabe com que técnica ou instrumentos foram feitas. Um museu fechado – esse ninguém tinha a chave – continha ossos de tatu e preguiça gigantes e de toxodonte (espécie de anta pré-histórica), além de pedaços de artefatos antigos, provavelmente das pessoas que ali viveram. O guardião do parque conta ainda sobre a ‘pedra do sino’:
- Uma pedra comprida e achatada, que a gente batia nela e fazia barulho igual a um sino.
- Cadê ela?
- A enchente levou...
Em 2004 e 2006 o rio subiu – algo que não acontece mais – e levou a pedra sonora. Procuraram, procuraram e não encontraram. Cheia de mistérios essa Itacoatiara do Ingá.
O passeio terminou no tal restaurante familiar, degustando galinha de capoeira (galinha caipira) e carne de sol com farofa e cerveja. A conta: R$ 20 reais.
Fui embora com dó no coração, porque a festa já ia começar, sanfoneiros se arrumando para tocar um forró. Convite do dono:
- Voltem na quinta feira (dia de São João).
Voltarei sim, em breve.
Abaixo, eu Anabela (esq.) e Marília em frente à Itacoatiara do Ingá.
Ao final da jornada em Campina Grande, partimos para Ingá, cidade às bordas do sertão. Chegando lá, encontramos o parque fechado – muito embora a internet dissesse que estaria aberto de oito da manhã às quatro da tarde, aos domingos. Era perto do meio dia. Uma casa de família, a cerca de 200 metros, funcionava como restaurante a todo vapor. Fomos até lá e informaram que o secretário de turismo, Vavá da Luz, tinha ido almoçar na cidade e mandara fechar o parque. Pedi o telefone da autoridade e toca a ligar, ligar, e nada. Vavá não atendia. Na falta de alternativa – e tendo que embarcar de volta para casa dentro de algumas horas –, encontramos o jeitinho brasileiro de entrar: por um buraco na grade do parque. Lá fomos nós, Marília na frente. Parahyba é terra de mulher valente, sô!
A Itacoatiara fica em meio ao leito de um rio muito bonito, onde pastam cavalos e bois. É uma pedra larga com a forma de um lagarto. As inscrições tomam toda uma encosta plana e vertical, como se fosse um mural. O incrível é que não se trata de pinturas rupestres, como na maioria dos sítios arqueológicos, mas de gravações em baixo relevo na pedra. Sulcos arredondados, suaves. Formas tão modernas quanto a arte da Tarsila. Vislumbro um lagarto, um abacaxi, um sol. Junto de nossos pés, estrelas. A constelação de Orion, explicam mais tarde.
Nisso vem chegando Ana Bela, amiga da Marília, com um casal.
- Olha aqui, esse moço é da polícia, agora vocês expliquem como conseguiram entrar...
Brincadeirinha...
Um rapaz autorizado por Vavá veio e abriu o portão do parque. Nem se incomodou com a nossa invasão, deu risada – Ó meu Brasil! Contou que arqueólogos do mundo inteiro já estiveram ali estudando as inscrições. Alguém disse que datam de 5 mil antes de Cristo. Ninguém sabe com que técnica ou instrumentos foram feitas. Um museu fechado – esse ninguém tinha a chave – continha ossos de tatu e preguiça gigantes e de toxodonte (espécie de anta pré-histórica), além de pedaços de artefatos antigos, provavelmente das pessoas que ali viveram. O guardião do parque conta ainda sobre a ‘pedra do sino’:
- Uma pedra comprida e achatada, que a gente batia nela e fazia barulho igual a um sino.
- Cadê ela?
- A enchente levou...
Em 2004 e 2006 o rio subiu – algo que não acontece mais – e levou a pedra sonora. Procuraram, procuraram e não encontraram. Cheia de mistérios essa Itacoatiara do Ingá.
O passeio terminou no tal restaurante familiar, degustando galinha de capoeira (galinha caipira) e carne de sol com farofa e cerveja. A conta: R$ 20 reais.
Fui embora com dó no coração, porque a festa já ia começar, sanfoneiros se arrumando para tocar um forró. Convite do dono:
- Voltem na quinta feira (dia de São João).
Voltarei sim, em breve.
Abaixo, eu Anabela (esq.) e Marília em frente à Itacoatiara do Ingá.
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