sábado, 27 de dezembro de 2014

Relembrar os dias

Dizer que o tempo está passando rápido, que tudo está ‘tão corrido’, já virou chavão. Mas quem parou para pensar nas consequências da correria? A principal delas é que todos estão sofrendo de amnésia. Ninguém se lembra de nada: qual história ouviu aonde, qual caso contou a quem, se já contou ou não. Nossa memória está toda picotada, feito um quebra cabeça antes de montar.

Assustei-me outro dia ao me dar conta de que não me lembrava do que havia feito na segunda-feira. Era sexta. Tentei, tentei e nada.

Resolvi, então, relembrar o que havia feito naquele mesmo dia. Desde a hora em que abri os olhos na cama, os mínimos detalhes: tocar com os pés o chão, a primeira imagem do rosto no espelho banheiro, o pão tostado no café da manhã. Senti um prazer enorme ao recuperar o meu dia e ainda deu um soninho...

Há uns três meses, faço isso toda noite: relembrar com detalhes o que fiz ao longo do dia. Agradeço os momentos bons, reflito sobre os difíceis. Principalmente, sinto-me dona da minha vida. A correria do mundo pode continuar, eu fico. Relembrar os dias reforça o Presente.

Desejo que, em 2015, possamos reforçar nossa Presença. Só assim se vive verdadeiramente.

domingo, 14 de dezembro de 2014

A alma penada

Minha amiga Adriana, que vive na Espanha, veio ao Rio de Janeiro visitar a família e tirou uma história do fundo do baú, que eu não conhecia: da alma penada.

No final da década de 80, morávamos na região que hoje se chama Baixo Lagoa. Os edifícios de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, a maioria tem duas entradas: uma pela Rua Alexandre Ferreira e outra pela Borges de Medeiros. Adriana morava em um desses prédios e o porteiro se chamava seu Januário, o Seu Janu.

Certo dia, voltando de uma caminhada, minha amiga resolveu entrar pela portaria da Lagoa, que era menos usada e por isso vivia fechada. Tocou o interfone e esperou o Seu Janu. Lá vem ele, mas pára, estático, e fica olhando para ela.

Toc, toc, toc (no vidro).

- Seu Janu! Abre a porta!

Seu Janu feito estátua.

Nessa hora, Adriana olha para o lado e vê: a alma penada.

- Mas como assim uma alma penada? Como ela era? – pergunto.

- Não dá para explicar...

- Mas como você sabia que era uma alma penada?

- ... A gente simplesmente sabe.

Toc, toc, toc, toc, toc! Adriana esmurra o vidro da portaria fazendo-o balançar. Grita:

- Seu Janu, abre essa porta!

Olha para o lado novamente e ... pluft! Sumiu.

Seu Januário sai do transe e destranca a fechadura. Nenhum dos dois fala nada, Adriana toma a direção da escada e sobe esbaforida.

Até hoje, quando vem ao Rio, dá de cara com Seu Januário, que ainda trabalha no bairro. Outro dia, ele parou para falar com ela.

- Adriana, que bom te ver, há quanto tempo!

Conversa vai, conversa vem, minha amiga não perde a oportunidade:

- E aquele dia em que o senhor me deixou presa na rua junto com a alma penada?

Seu Janu finge que não entende, se despedem, cada um segue seu caminho.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

30 anos esta noite

Mas era ontem!... Acordar antes das seis, engolir o café, pegar o ônibus até o Leblon, saltar em frente à igreja, passar pelo porteiro baixinho com cara de padre, encarar horas e horas de matéria massacrante. Uma, duas semanas de aula em março e as provas começavam, e iam até junho sem parar. Insano.

Meu pai, zeloso com a filha única, deve ter se informado com os amigos e veio com a ordem:

- Vai estudar no Santo Agostinho.

- Quero o Princesa Isabel.

- Santo Agostinho!

No segundo ano ele morreu e me abandonou com a decisão. Eu podia ter mudado de escola, mas já havia feito laços de amizade e resolvi permanecer. Nesse mesmo ano fatídico, fiquei em recuperação pela primeira vez na vida, matemática, e passei janeiro inteiro frequentando aulas as segundas e quartas, para fazer uma prova no final do mês em que tenho certeza que não tirei a nota exigida. Mas me passaram de ano, e isso eu agradeço.

Veio o terceiro ano e as já sofridas aulas aos sábados se transformaram em provas aos sábados. Enquanto os amigos saíam à noite nas sextas, eu tinha que dormir às dez para levantar cedo e encarar avaliações de física, química, biologia... Queria morrer.

O Santo Agostinho coincidiu com um dos períodos mais duros da minha vida. A morte do pai, a doença da mãe, muita solidão. Talvez por isso não guarde lembranças claras e nenhuma foto. As colegas que organizaram a festa dos 30 pediram fotos, registros, o álbum de formatura. Não tenho nada. Não guardei nada. Nem saudade.

Mais tarde, quando um grupo de ex-colegas começou a me chamar para tomar chope, no início, não me sentia confortável. Com o tempo, passei a amar e a valorizar aquele grupo de pessoas bem parecidas comigo, bem formadas, que levam a vida com extrema seriedade e responsabilidade, segurando as barras sem fazer drama. Dizem que a escola não forma, quem molda o caráter é a família. Mas essa forma de encarar a vida é, sim, herança do Santo Agostinho.

Quando já era jornalista, fui entrevistar o antropólogo Everardo Rocha, que escolhi para meu orientador na monografia ao final do curso na faculdade. Contou que seus filhos estudavam no Santo Agostinho.

- Ai que horror, que colégio horrível, eu nunca colocaria meus filhos lá (de fato, não o fiz). Por que fez isso com os pobrezinhos?

- Porque queria formar seres humanos como você.

Assim aprendi também a sentir orgulho de responder à pergunta ‘onde você estudou?’:

- No Santo Agostinho.

Três anos de chumbo, muita pressão e pouco prazer. Três anos de tristeza e sofrimento na esfera pessoal. Mas três anos vezes dez são capazes de transmutar muita coisa. Na peneira do tempo ficaram a Amizade, a Alegria, a certeza de ser capaz.

E a linda festa dos 30 anos – impossível descrever tamanha riqueza, em todos os sentidos – foi o fechamento de um ciclo que começou lá na adolescência e que se encerrou nesta noite em que médicos, engenheiros, dentistas, publicitários, jornalistas, fonoaudiólogos, professores de educação física, profissionais e pais de família, se acabaram de dançar, se atiraram no chão para sair bem nas fotos, viraram crianças novamente, em um rito de passagem que homenageia a instituição que nos preparou tão bem – isso é uma realidade – para a batalha que é a vida.

Obrigada, Colégio Santo Agostinho. Obrigada aos colegas que organizaram a festa dos 30 anos. Muito obrigada.